Preciso dar um jeito de aliviar esse peito

A escrita é uma forma de desanuviar a cabeça. Já experimentei a sensação de alívio após colocar no papel pensamentos ou sentimentos que ocupavam meus pensamentos de forma incessante. Escrever não soluciona meus problemas, mas parece que gera a sensação de que estão rendidos ao enfrentamento.




Como todos têm acompanhado diariamente e constantemente nos noticiários, nas redes sociais, nos grupos de WhatsApp, o Rio Grande do Sul está submerso e soterrado por chuvas torrenciais que mostraram o alto poder destrutivo da Natureza. Não podemos culpá-la, pois afinal de contas fomos nós, os seres humanos, que geramos as mudanças desencadeadores dessa catástrofe. Os prognósticos não são os melhores, pois apontam que eventos de proporções extremas como os que temos vivido serão comuns. Eu não queria que isso se tornasse comum, e não sei se conseguiria lidar com esse eventos extremos na condição de comuns. Eles sugam nossas energias físicas, eles sugam nossa saúde mental, eles nos colocam em um eterno sistema de alerta - e de medo, naturalmente.

Todos os recordes em termos de cheias foram batidos nestes últimos dias. Os temporais e as inundações estão dominando gradualmente, geograficamente, todo o estado. Tiveram seu início no centro do estado, seguiram o curso em direção ao norte e nordeste, mudaram em direção à capital e, agora, seguem firmes rumo ao sul do estado. Será que nada ficará incólume às tempestades?

Emocionalmente, não estamos incólumes. Estamos todos mal. Eu estava procurando uma postagem sobre isso, as infelizmente não a encontro. Dizia algo parecido com "quem está abrigado, não está bem. quem está desalojado está pior" e assim por diante. O sentido da publicação é de que todos mundo vai sair desse cenário com sequelas, que são variadas e de diferentes profundidades de acordo com o tamanho da vivência, do impacto desse apocalipse hídrico direta ou indiretamente nas vidas.

Então a situação é essa: estou abrigada na minha casa. Tenho teto, tenho luz e tenho fornecimento da água, que foi restabelecido nas minhas cercanias depois de alguns pontos da cidade; e que foi restabelecido nas minhas cercanias antes de outros pontos da cidade. E ainda há localidade sem fornecimento de água.

Estou na minha casa, e até agora a Defesa Civil não bateu em minha porta para dizer que, para nossa segurança, teremos que deixar nossa casa porque seria mais seguro para nossas vidas esperarmos pelo fim do pesadelo em outros lugares. Há, no momento, 600 pessoas fora de seus lares - dentre elas há famílias que poderão eventualmente voltar para suas casas, mas há aquelas cujas moradias já estão condenadas pela movimentação do solo. Essa evacuação ocorre em diferentes pontos da cidade, não apenas em um bairro.

Estou na minha casa, será que receberei uma visita ordenando que eu a deixe por tempo indeterminado? Será que ocorrerá alguma movimentação do solo pelo excesso de águas que me obrigará a sair e não mais voltar? As chuvas fortes estão previstas para os próximos dias, e com duração de alguns dias. O que elas trarão além do agravamento do que todos já estão vivendo?

Amplio meu horizonte para além do meu local. Olho para o restante do estado. Olho para Porto Alegre, Canoas e outras cidades engolidas pelas águas. Locais onde o volume de água excedeu os 4 metros de altura, e me pergunto: será que um dia essas águas vão voltar ao seu curso normal? Ou o curso normal dessas águas é através das ruas e estradas construídas pelos homens?

O que restará depois que nada mais das águas restar? O que restará de nós? Não acredito mais na frase clichê de que eventos catastróficos nos transformam em pessoas melhores. A pandemia não nos transformou, e as águas não vão transformar: ainda haverá em plenário as pautas que ampliam os massacre do homem contra a natureza. Nada mais previsível do que a Natureza se manifestará mais e mais vezes de forma dura e dolorosa. Ainda há pessoas invadindo casas que precisaram ser evacuadas para realizar roubos. Ainda há pessoas que se aproveitam da fragilidade e do sofrimento dos outros. Acho que isso é uma das coisas que mais tem me afetado.

É obvio que me sinto muito privilegiada pela situação em que nos encontramos em meio ao cenário de destruição na cidade e no estado como um todo, mas isso não me conforta quando penso em tudo o que estamos vendo, ouvindo, recebendo de vários cantos do estado. Não saí bem da experiência da pandemia - pelo menos eu acho que não me recuperei plenamente da experiência da pandemia. Não estava preparada para outra experiência traumática (mas sejamos honestos, alguém de nós esteve preparado para qualquer coisa desse gênero na vida?).

Estou num momento em que corro o risco de avançar sobre o pescoço de alguém que disser para mim a palavra "RESILIÊNCIA". Acontece que nos últimos anos, ainda anteriores à pandemia (e entre a pandemia e as inundações) vivenciei um conjunto de experiências que devem ter colocado fim à minha capacidade de  resiliência. Eu me cansei. Eu só quero paz de espírito. Eu só quero poder acordar sem me preocupar com coisas que são maiores do que eu, que estão fora do meu controle, mas que afetam diretamente a vida. Só queria poder voltar a colocar minha cabeça no travesseiro de forma tranquila, sem a companhia do medo de que algo aconteça a nós, aos nossos familiares, aos nossos amigos.

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