Não é fácil ser mulher
Não é fácil ser mulher. Eu tinha uma esperança que houvesse um progresso e que ao me tornar adulta eu não lesse sobre assédio, violência, medo de andar pelas ruas pelo simples fato de ter nascido mulher. Eu esperava que na minha vida adulta, as experiências e temores que vivi enquanto adolescente não ocorressem mais, ou pelo menos tivesse diminuído. O sexismo, que permeava a minha vida em muitas instâncias, diminuíssem. Eu ainda tinha uma fé na mudança.
Acredito que os meninos não tenham a menor ideia do que é vestir a pele de mulher. Vestir a pele de uma mulher é se preocupar com um conjunto de coisas que são banais no universo masculino e que não demandam, dentro desse universo, qualquer preocupação: se pode continuar a caminhar na calçada ou se é mais seguro atravessar a rua porque há um grupo de homens logo à frente; pegar um circular ou o metrô sem se preocupar se vai ser encoxada dentro do transporte público ou se vão passar a mão no seu corpo; aprender a não andar por aí com fones de ouvido para que possa estar atenta ao movimento e aos sons estranhos; aprender a andar com o cabelo longo solto, porque se está em rabo de cavalo fica mais fácil para um agressor te puxar; ficar aliviada ao descobrir que o Uber que você chamou é dirigido por uma mulher e não por um homem; aprender que a gente caminha atenta no meio da calçada, para que não haja possibilidade de que sejamos encurraladas.
Com exceção do Uber, que é contemporâneo, as preocupações das meninas de hoje são as mesmas que eu e minhas amigas tínhamos na nossa adolescência, sempre premiadas pelos comentários inadequados e grosseiros feitos por homens desconhecidos que acham que poderiam soar como elogio. Há algumas semanas, minha filha de 15 anos acelerou seus passos a caminho do mercado porque um homem no ponto de ônibus não parava de encará-la - e o fazia a tal ponto que ela se sentiu desconfortável e com medo.
Confesso que não fui uma adolescente muito dentro dos padrões das meninas da minha época. Eu adorava andar de bicicleta e jogar futebol com quem tivesse uma bola. Naqueles tempos sequer se imaginava a possibilidade de mulheres jogarem futebol e ainda haver uma seleção feminina de futebol. Aliás, esse esporte foi proibido por lei às mulheres por cerca de 40 anos: em 1941 Getúlio Vargas assinou o decreto de proibição da prática do esporte por considerar que fazia parte de esportes "incompatíveis com as condições de sua natureza".
A ideia de que o esporte é incompatível com a natureza da mulher permaneceu por muito tempo e ainda resiste. As críticas ao desempenho de uma jogadora, especialmente se ela joga futebol, não são sobre seu condicionamento físico ou preparo, mas acabam sendo direcionadas ao fato de ser mulher e de estar num lugar que não é reconhecido como dela.
Somente quando eu cheguei à vida adulta que a minha mãe me contou que participou de uma reunião de pais da minha turma da escola, e que algumas mães a interpelaram: estavam preocupadas e achavam que minha mãe deveria me levar à psicóloga porque eu gostava de fazer só coisas de meninos, como andar de bicicleta e jogar futebol - e vôlei, e basquete, e ping-pong. A mãe achou um absurdo a intromissão dessa gente, mas nunca me disse nada e eu continuei batendo minhas bolas por aí. Obrigada, mãe.
Às vezes as alunas contam situações de desconforte e de constrangimento, e eles se assemelham a situações da minha adolescência. O relato da minha filha só se somou ao cenário que tenho acompanhado e que tem me incomodado. Tenho me pego pensando nisso, mas também em como alguns estereótipos sexistas, sobre o lugar da mulher ou a representação dela, seja no mundo material, seja no mundo virtual.
No mundo concreto, mais de uma vez, passei por situações no trânsito em que os motoristas homens estavam completamente errados no trânsito, por pouco não colidiram no meu carro ao fazerem manobras proibidas, mas que gritavam comigo como se a culpa do quase acidente fosse minha. Eu estava respeitando as placas, o fluxo do trânsito, as preferenciais, mas sob a ótica desses sujeitos a quase colisão era responsabilidade de uma mulher - e vociferam isso. Acredito que se fosse um outro homem dirigindo meu carro a situação não seria a mesma.
No mundo das novas tecnologias, tenho me dado conta de que os assistentes virtuais são mulheres ou possuem vozes femininas. Magazine Luiza tem a Lu para te atender; o Bradesco tem a Bia. A Amazon tem a Alexa; a Apple tem a Siri. Para alguns pesquisadores, a voz feminina traria maior tranquilidade, confiança e segurança a quem precisa de ajuda. Mais do que isso, a voz feminina construiria quase uma aura de atendimento maternal. A discussão que cerca o uso da voz feminina nos assistentes traz a seguinte questão: o assistente de voz feminina seria resultado do reflexo da sociedade contemporânea, que ainda enxerga a mulher numa condição apenas maternal ou a voz feminina reforçaria o sexismo e o lugar que deveria ser ocupado pelas mulheres, numa posição de subserviência? Sobre essas questões há publicações bem interessantes: Why do so many virtual assistants have female voices? e Mulheres digitais. Por que todas as assistentes virtuais têm vozes femininas?.
Mas e a Inteligência Artificial? Como ela age nesse contexto? Tenho duas experiências bem interessantes sobre isso. A primeira delas ocorreu com uma página do tipo ChatGPT da vida foi escrito o proxy que solicitava que o programa criasse uma imagem de uma historiadora, que era pesquisadora e professora. Atentem que todas as características inseridas no proxy eram femininas. Como resultado, a imagem apresentada era de um homem de terno, sentado atrás de uma grande escrivaninha coberta de livros. Atrás de si havia uma grande prateleira com mais obras. Apesar de todas as orientações dadas ao proxy indicavam que a imagem deveria ser de uma mulher no papel de historiadora, o programa entregou uma figura masculina.
Já a segunda delas também envolve o mesmo programa de IA, mas vou contextualizar. Meu sobrenome é Quitzau, pouco conhecido, de origem do norte da Alemanha e, assim como outros, difícil de pronunciar. Acontece que mais de uma vez me perguntaram se a origem dele teria alguma ligação com os astecas, já que lembraria Quetzalcoatl a divindade que era uma serpente emplumada, que separaria as fronteiras entre a terra e o céu. A única semelhança que vejo é em Que|Qui - até porque tenho dificuldade em duas características atribuídas à ela, que é a questão de estabelecer limites e também de transgredi-los. Em conversa com o livreiro da Dublinense, numa das atividades do Autopresente Secreto, ele perguntou acerca da origem do sobrenome, e desde então, quando entro em contato com a editora, ele brinca que sou de origem asteca-germânica.
Este foi o mote para meu segundo experimento com a IA. O proxy dizia "Criar uma imagem de uma mulher. Essa mulher deve ter um fenótipo que seja germânico. Sua vestimenta deve fazer referência ao deus asteca Quetzalcoatl." Eis o resultado:
Imagem 2: imagem gerada por IA | Chat GPT |
Imagem 3: imagem gerada por IA | Chat GPT |
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