Espiritualidade, coerência, aprendizagem e acolhimento.
Que título enorme, heim? Essas quatro palavras têm ocupado meus pensamentos há um bom tempo, mas até o momento eu não havia parado para escrever sobre isso. Porém, essas quatro palavras atingiram aquele ponto em que eu preciso escrever e colocar para fora ou elas vão continuar atormentando minha atenção, já que entre uma coisa e outra que preciso fazer (e até mesmo no meio de algo que estou fazendo) elas vêm chamar minha atenção sobre si próprias. Vou tentar concatená-las da forma que parecem estar ligadas na minha cabeça, mas nem sempre a gente consegue atingir aquilo que deseja. Até porque cada uma delas, por si só, poderia render um texto apenas para elas. Mas vou tentar - até porque minha mãe sempre disse que "quem não chuta, não marca", então se eu não tentar não vou saber mesmo.
Já há algum tempo eu tenho me mantido um pouco distante da Igreja enquanto instituição, mas sem deixar de cuidar da minha espiritualidade. Meu distanciamento tem sido resultante da percepção de uma incoerência entre o que se prega e o que se vive no cotidiano. Obviamente que sei que a igreja, seja ela qual for, é feita por seres humanos passíveis de errar. Mas tenho sentido que há coisas que não podem ser objeto de erro. A coerência entre o que se prega e o que se vive; no caso de nós, professores, sobre o que dizemos e o que fazemos. A gente aprende pelo exercício da imitação e pelos exemplos - talvez mais ainda do que apenas pelas palavras.
Quem me conhece há muito tempo sabe o quanto já fui ativa na comunidade luterana: eu tocava órgão nos cultos, participava ativamente do grupo de jovens e vivia intensamente ali. Quando eu tinha uns 12 ou 13 anos foi quando me pediram para tocar nos cultos - na real, não pediram: meu pai estava numa reunião do presbitério e disse que eu tocaria, portanto ele apenas me informou 😆.
Toquei por um bom tempo, e àquela época a liturgia era bastante tradicional. Eu gostava, porque achava que aquilo nos ajudava a entrar num processo de introspecção que era necessária ao momento. Quem tocava antes de mim era um senhor muito querido, o S. Nicolau. Sempre que ele estava no culto me procurava para conversar. Eu nunca soube por que o S. Nicolau não tocava mais, e sempre tive certeza de que era uma escolha dele.
Uma vez o pastor me ligou e me passou os hinos que seriam cantados no culto de domingo, como sera seu costume, eu anotei tudo e ensaiei. Cheguei à igreja, liguei o órgão, estava repassando as hinos quando a esposa do pastor chegou acompanhada por uma moçada com guitarra, teclado e um instrumento de percussão. Até aí, tranquilo: não organizei o culto, sabia quais eram meus hinos e poderia ser que eles teriam uma participação. Foi quando a esposa do pastor me disse que aquele era o grupo que tocaria no culto naquele dia. E em outros também. Só pensei: "Putz, por que não me disse logo? Daí eu não precisava ficar ensaiando em casa..."
Se eu me chateei por não tocar? Não. O que me chateou? A sensação de descarte dentro do ambiente da igreja. A forma como me informaram de que meus serviços (hahahaha! Serviços!) voluntários foram dispensados. E foi apenas então que me peguei pensando se o S. Nicolau parou de tocar porque quis ou se ele também foi dispensado, pois eu nunca havia imaginado que uma coisa dessas poderia acontecer desse jeito no ambiente da igreja.
Uma das coisas que mais têm ocupado meus pensamentos e envolvem o título do texto é que, seja na condição de pastor ou na condição de professor, você é uma pessoa de referência para muitas outras, e que o seu exemplo acaba sendo aquilo a que as pessoas podem se apegar. Parece muita responsabilidade, e é mesmo. Professores ou lideranças religiosos, tanto faz, acabamos sendo reconhecidos como portadores de uma autoridade no interior dos grupos em que transitamos. Professor já gozou de maior respeito no passado, mas acho que ainda é visto por uma parte da sociedade como uma autoridade e não como um "perigo".
Quando Helena era pequenina, as pessoas se admiravam que ela cumprimetava as pessoas ao chegar aos lugares, agradecia pelas gentilezas e então me perguntavam como isso acontecia. A resposta sempre foi: criança aprende pelo exemplo, então não adianta eu fazer discursos sobre isso para ela se não há vivência disso - a aprendizagem vem da vivência e do exemplo, por isso a prática diária precisa ser coerente com o que falamos. Pastores (e padres, e outras lideranças religiosas) e professores acabam exercendo uma tarefa que a sociedade espera que seja a de ensinar. Se minha filha sempre me viu cumprimentando a todas as pessoas, a coisa mais natural para ela é que crescesse sem fazer distinção se é o porteiro ou uma autoridade: todo mundo recebe seus bons dias.
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Maya Angelou |
No final de semana, calhou de eu ter contato com dois vídeos que falam sobre exemplo, educação e sobre acolhimento. O primeiro é de Maya Angelou, que lembra que "se você ensina, você deve viver o que ensina", que não é possível mandar fazer uma coisa diferente do que eu mostro, porque a gente sabe o que é certo e o que não, portanto não podemos nos ater a escolher apenas aquilo que seja conveniente. O vídeo pode ser acessado no Instagram. Parece tão básico, mas não é: a gente deve viver aquilo que discursa e não discursar para a torcida, de acordo com os ventos do tempo presente. Não é um exercício fácil. Mas não parece tão óbvio, leitor? Se eu falo em sala de aula sobre acolhimento e respeito essas ações devem fazer parte do meu cotidiano.
O segundo vídeo é de uma pastora participando do Podcast da Karina Bacchi, que depois de se converter virou pregadora e cantora gospel (acho eu). Essa moça já se meteu em polêmicas após tornar-se evangelizadora por supostamente apoiar discursos religiosos homofóbicos. Confesso que não fui atrás para saber exatamente o que aconteceu. Pois foi no programa dela, que minha prima me mandou, que essa pastora gigantesca deu uma lição que muitos de nós, especialmente lideranças religiosas, esqueceu: do verdadeiro teor do Evangelho. Dá pra dizer que ela fala com uma enorme tranquilidade e com muita, muita propriedade. Infelizmente, o vídeo não traz o nome da entrevistada, o que é uma pena mesmo.
Em tempos de tanta intolerância, as pessoas têm se apegado a textos do Antigo Testamento para justificar posicionamentos contra casais homoafetivos, por exemplo. Estrategicamente, deixam de lado aquelas orientações que não seriam convenientes (ou que talvez não conheçam, pois a única fonte de orientação não apresenta todo o documento) - e Maya Angelou reforçou que a gente precisa de coerência entre o que vive e o que defende. Se valem aquelas leis de lá, valem também a proibição do consumo de determinados alimentos (aquele camarãozinho supimpa "já era", de acordo com esse texto dos Levíticos, cap 11: 10-12). Aquela costelinha de porco ao molho barbecue ou o torresminho também devem sair da dieta, segundo o mesmo livro, mesmo capítulo, mas versículos anteriores aos citados. Tem também o lance das roupas a serem usadas, mas tá lá em Deuteronômio e não vou continuar a levantar essas informações. Elas servem só para dizer que não posso pescar as normas que me são convenientes e varrer para debaixo do tapete todo o resto. O combo precisa dar conta de tudo.
Alguns movimentos religiosos contemporâneos têm dado muita ênfase à figura do rei Davi, talvez como símbolo de força e liderança. Pois o Davi desobecedeu nada mais, nada menos que um dos 10 Mandamentos ao cometer adultério. Tá lá no livro de II Samuel, e para resolver o problema ele mandou o marido da moça para o front de batalha (versão resumida de todo esse BO). Furou o olho do colega, heim Davi?
Por que eu voltei ao Antigo Testamento aqui? Particularmente, eu entendo que o Antigo Testamento serve como um preâmbulo para aquilo que é realmente importante para os cristãos: o Evangelho. É importante para saber da trajetória do povo do qual Jesus fazia parte, pois era judeu, e de que a vinda do Messias era profetizada. MAS - e isso é o que tem me incomodado tantoooooo - o fundamental é o que Cristo pregou e, principalmente, viveu: ele ensinou a amarmos uns aos outros como ele o fez; a vivermos em paz; a sermos caridosos e cuidarmos dos outros; a acolhermos aqueles que são marginalizados. Ao lermos o Evangelho podemos perceber que ele acolheu a todos os que eram marginalizados em seus tempos. Um bom exercício de imaginação sobre suas ações e seus ensinamentos é pensar em quem será que precisaria de seu acolhimento nos dias atuais: quais os marginalizados que ele acolheria? Às vezes penso que ele seria surrado pelas mesmas pessoas que dizem segui-lo.
E aqui vem um lembrete importante: o único lugar em que há uma ação agressiva de Cristo é quando ele chega a Jerusalém e encontra aquele monte de bancas fazendo comércio no templo - e ele pega o chicote e sai destruindo tudo. O único momento foi o de espalhar aquelas pessoas que estavam desrespeitando um espaço sagrado. Não me recordo de passagens em que ele se aliaria a líderes políticos do seu tempo, que venderia coisas chamadas de sagradas, que incentivaria a agressão a aqueles que são diferentes dele ou, ainda, obrigaria as pessoas a viver o que ele pregava. Quer seguir, segue. Não quer seguir? Que pena, não te verei na casa de meu pai onde há muitas moradas.
Por isso que achei o vídeo da pastora convidada tão bacana e tão importante. Caso queira assisti-lo, só o achei no Instagram e o acesso pode ser por aqui. De forma tão tranquila e tão sensata ela resgata aquilo que é fundamental pra gente: amar e acolher o próximo. Quantas pessoas não se sentem incluídas em suas comunidades porque, de alguma forma, sentem-se julgadas pelos outros? Ou não se sentem bem recebidas? Ou sentem que o discurso religioso e o termômetro das pessoas são agressivos, dão medo? Foi muito bacana ver a tranquilidade e segurança com que ela falava e ver a entrevistadora apenas balançar a cabeça porque não tem como argumentar.
É preciso viver o que se fala. Viver. Meus irmãos e eu tivemos um professor de Física na escola que se identificava como ateu, e a gente dizia que ele era o ateu mais cristão que a gente conhecia - e isso de dava por observarmos as suas ações, o jeito como vivia, como acolhia, como respeitava, como se preocupava. Sua forma de viver em sociedade - sua coerência entre discurso e prática - sempre foi um modelo inspirador pra gente. Era nosso professor. É o que a Maya Angelou fala. Não posso dizer, por exemplo, que comentários racistas não podem ser tolerados se eu não ajo para que eles não sejam aceitos. Se eu faço de conta que não ouvi. Eu não posso falar do amor de Deus e não permitir que uma pessoa que é diferente de mim não se sinta acolhida nesse lugar e se sinta excluída do espaço. Não posso descartar as pessoas sem qualquer explicação se algo novo ou mais interessante tenha aparecido. Não posso falar em piedade se meu olhar sobre quem é diferente é sempre impiedoso.
Seu Nicolau, o antigo organista, já faleceu. Eu desejo muito que parar de tocar nos cultos tenha sido uma escolha dele ao invés de um descarte como senti que foi meu caso. Lembro que na primeira vez que toquei ele me procurou para dar as dicas sobre o instrumento em função da pedaleira e tals, mas ele não havia se preparado para tocar naquele dia porque sabia que eu tocaria. E por algum tempo ele agiu como uma espécie de tutor para mim, porque ele fez aquilo por muitos e muitos anos em sua vida. Ao S. Nicolau sou grata por todas as orientações e dicas que ele me deu, e que me acompanharam pelos anos em que toquei.
A esta página de blog sou agradecida por receber meus pensamentos, com a expectativa de que eles se sintam acolhidos aqui, após eu cuidadosamente tê-los tirado um a um da minha cabeça. A quem chegou até aqui em sua leitura, torço para que eu tenha conseguido concatenar minhas ideias e que, de alguma forma, possam também ajudar a pensar sobre as marcas que deixamos por onde caminhamos na vida.
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