Sobre escrever
Não me recordo se em alguma postagem eu já escrevi sobre o ato de escrever. Pode até ser que eu o fiz de forma indireta, ao tratar de algum livro que eu tenha lido ou sobre publicações que chegaram ao topo das listas de mais vendidos e eu não tenha entendido como. No momento, não estou com vontade de ficar procurando em publicações antigas.
Minhas publicações são muito irregulares e tratam de temas bem diferentes. Quase de forma randômica, escrevo sobre o gambá no telhado, sobre um livro que li, uma adaptação feita para o cinema, uma lembrança querida, uma saudade e assim por diante. Meu blog não é feito para eu ganhar dinheiro nem desejo que seja um diário de minha vida, mas é como se fosse um espaço onde eu pudesse pensar alto sobre vários assuntos - e pensar alto sem atrapalhar quem está ao meu redor, pois as pessoas têm a opção de ler ou não ler o que eu escrevo.
Escrever não é e nem nunca foi - e tampouco um dia será - uma atividade fácil. Um professor na minha graduação disse, certa vez, que escrever é 1% de inspiração e 99% de transpiração. É trabalho. No entanto, como não vivo da escrita, escrever para mim é quase um ato terapêutico - porém não menos trabalhoso, que fique muito claro.
Há momentos no cotidiano em que me pego escrevendo na minha cabeça sobre um assunto: alguma situação que eu vi, algum texto que eu li funcionam como um gatilho para uma reflexão sob a forma de um texto construído na minha cabeça, mas que não se materializou no papel. Isso me lembra de que eu ainda não adquiri o hábito de carregar comigo um caderninho para registrar, ao menos, a linha condutora do meu texto mental. E também me faz questionar se é possível eu falar em materialização de um texto quando falamos de um blog e quando nossa produção escrita encontra-se no mundo virtual.
Será que no futuro os pesquisadores conseguirão acompanhar o processo de escrita autoral? Eu me lembrei dos escritores que faziam várias observações à margem de seus textos antes de chegarem à versão final, e graças às essas observações os pesquisadores e nós, leitores, podemos acompanhar as decisões, as complementações e as alterações que o autor realizou na redação de seu texto até chegar às prateleiras das livrarias.
Lembro-me de uma visita que fiz ao Centro Cultural Érico Veríssimo e onde vi uma mapa que Érico havia desenhado da cidade de Antares. Nele estavam distribuídas as casas das famílias, o cemitério e até mesmo um esboço da aparência dos personagens que fariam parte daquele incidente. Digitando nós não rascunhamos - a não ser que seja um TCC ou uma tese, em que a gente tem trocentos arquivos chamados Final.docx, Final2.docx; VaiQueÉSuaTaffarel.docx, livramento.docx e assim por diante.
Posso estar redondamente enganada porque imagino que os processos de criação sejam individuais, e por isso tão diversos. Já li sobre autor que passava o dia todo em pé para escrever; outros que tinham um rotina praticamente laboral, de oito horas diárias sentados à frente de sua máquina ou munidos de suas penas e tinteiros. Havia outro que era notívago e produzia sob o silêncio das noites.
Neste exato momento em que escrevo, já realizei várias alterações no meu texto que não aparecerão jamais para você, leitor - mon semblable, mon frère - ou para qualquer curioso que tenha tempo e absolutamente nada de interessante para fazer, e que resolva estudar minha produção caseira e terapêutica de textos.
Se alguma vez eu já pensei em escrever um livro? Sim, pensei. Por que não escrevo? Acredito que por várias razões. Acho que escrever para publicar é um pouco um ato de se despir, se desnudar à frente de quem lê. Por mais que um texto seja ficcional, acho muito difícil que entre suas linhas não se apresente um pouco de quem é seu autor - suas fragilidades, seus medos, seus sonhos, seus desejos. Será que todos estão prontos para se lançar aos olhos do mundo de forma tão aberta? Particularmente, não tenho qualquer problema com o caso de algum colega precisar mexer num texto em que estamos trabalhando - mi texto, tu texto -, mas, honestamente, eu não sei como reagiria se publicasse um livro que foi fruto de suor e sangue e caíssem na minha cabeça achando que não vale a tinta que foi gasta para imprimi-lo.
Em primeiro lugar, para escrever um (bom) livro é necessário mais do que o domínio da língua culta e a capacidade de coesão. Temos visto nas livrarias uma enorme quantidade de campeões de venda que muitas vezes passam longe da boa escrita - mas campeões de venda não são, necessariamente, bons livros. Mas são obras que atendem a uma demanda que o mercado editorial percebe e para a qual investe. Num raciocínio parecido com a Pollyana, da literatura, poderíamos dizer que o efeito positivo da fraquíssima série Crepúsculo, por exemplo, foi o aumento das vendas de O Morro dos Ventos Uivantes.... Venderam-se muitos livros sobre o arquétipo do amor proibido entre seres de dois universos diferentes (livros ruins, mas alicerçados num tema que costuma render frutos) e o rebote foi o crescimento nas vendas de uma obra considerada um clássico de literatura e que era lido pelo Edward Cullen. Quem, afinal de contas, não torce para haja um final feliz para um amor impossível e desacreditado? Mas acho que mesmo utilizando um arcabouço que costuma funcionar, eu não conseguiria escrever nada assim.
É necessária uma boa história a ser contada. Este é o segundo fator de dificuldade: encontrar uma boa história a ser contada e contá-la de forma que o livro se torne para o leitor a sua própria Sherazade, com a qual ele se encanta e aguarda ansiosamente pelo momento em que vai poder tê-lo novamente em suas mãos. Eu adoro quando as Sherazade da literatura me encantam e me hipnotizam, por isso eu sei da dificuldade em conseguir que uma história prenda os leitores. Não consigo me imaginar dona de uma boa história a ser contada.
Em terceiro lugar há a impossibilidade de usufruir do ócio. Em tempos de tantas demandas e de tanta velocidade fica a sensação de que nunca conseguimos realmente nos desligar das cobranças cotidianas. Ficam as sensações de que a cabeça não consegue nunca desacelerar e de que estamos sempre devendo algo para alguém. Soma-se a isso, a cereja do bolo da contemporaneidade: a sensação de culpa por simplesmente não fazer nada. Porém, não precisar fazer nada e poder desacelerar os pensamentos são duas coisas que considero fundamentais para poder criar. Ao diminuir a velocidade do pensamento e ao tirar da mente compromissos e cobranças é possível abrir espaço para histórias e, quem sabe, para boas histórias. Não precisam ser longas, não precisam ser complexas, basta que sejam boas e que encantem quem as lê.
Por fim, Mark Twain afirmou certa vez: "Eu não sabia o que era a eternidade. Serve para nos dar uma chance de aprender alemão". Não tenho a eternidade para aprender alemão, bem como não a tenho para ler livros ruins. Essa falta de tempo me faz pensar, também, sobre a minha incapacidade de escrever uma obra literária de qualidade quando penso nos livros tão bons que já pude ler. Se eu sinto que não tenho mais tempo para gastar com livros ruins, eu também penso que um(a) eventual leitor(a) também não tem esse tempo precioso para isso.
Se ao ler um livro fraco e ruim eu o abandono para poupar o meu tempo - e penso que até eu poderia até escrever algo melhor do que aquilo -, por outro lado eu me lembro dos livros sensacionais que já li e me sinto, novamente, muito pequena ao lado de grandes histórias contadas. E que foram parte de inspiração, mas muito mais de transpiração - é só acompanharmos os processos de escrita de vários autores e podemos perceber que o ato de escrever foi desgastante, levou alguns deles aos limites de suas condições físicas e mentais e, por vezes, foi abandonado e retomado anos mais tarde. Escrever pede de nós doação, trabalho e humildade. O que a escrita quer de nós é coragem - desculpe aí por essa, Seu Guimarães Rosa. Eu não resisti...
Não é falsa modéstia minha dizer que não teria condições de escrever uma obra literária. Talvez seja, para mim, um ato de humildade perceber que tenho limites os quais não consigo ultrapassar minimamente de forma satisfatória, e que meu lugar no mundo das letras é muito mais como leitora que ainda se encanta do que como escritora pretensiosa. Conseguir escrever um texto acadêmico ou para um blog de forma coesa é uma coisa; escrever um livro é coisa bem diferente. Deixar transparecer quem eu sou por dentre as linhas para pessoas completamente desconhecidas, mesmo que essa não seja a intenção do meu ato de escrever, é algo impensável para mim. Eu poderia dizer que se trata de manter um certo mistério sobre mim (essa frase aí é boa de marketing, heim?), mas na verdade eu acho que seja pudor mesmo.


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