As Portas do Desconforto

Como já escrevi certa vez, este aqui é um blog intermitente. Por  um tempo eu pensava que deveria escrever sempre, e me cobrei por isso. Até que um dia um querido amigo, Cassiano, me falou para desencanar e escrever quando encontrasse algo realmente relevante (fosse pela beleza, fosse pelo conteúdo, fosse pelo desconforto, fosse pela paz). Novamente, a relevância que me moveu a escrever não foi movida pela beleza (como tanto esperava), mas pelo desconforto, pelos questionamentos, pela perplexidade e – por que não? – por sentir que estamos regredindo e em alta velocidade.

Obviamente, sei que a história não acontece de forma linear e evolutiva. O processo é mais complexo, e no que diz respeito às mentalidades isso ocorre de forma ainda mais lenta, mas esperava que no primeiro quartel do século XXI, algumas coisas pudessem ter progredido. Neste caso, refiro-me à visão que se tem da mulher na sociedade, tema por si só que já abre um amplo leque de temas. Desde ontem, no entanto, três assuntos têm me perseguido: a redução de uma campeã de natação finlandesa à mera condição de “namorada de um piloto de fórmula 1”, um texto sobre a relação entre a mídia e a cultura do estupro, a pedofilia e a precoce erotização das meninas no Brasil e o Estatuto do Nascituro (PL 478/07).

Neste exato momento, eu deveria estar escrevendo minha dissertação, mas acho que minha orientadora pode perdoar esse pequeno desvio de percurso.

O primeiro desconforto veio com a forma como a notícia sobre a vinda da nadadora finlandesa Emilia Pikkarainen foi divulgada pelo site da UOLPikkarainen é medalhista, já participou de três olimpíadas e referência no nado borboleta em seu país. Apesar de um currículo respeitável conquistado por mérito próprio e muito treino, a imprensa brasileira reduziu suas conquistas esportivas ao posto de "namorada de piloto de fórmula 1". É assim que ela é apresentada aos leitores: não como a atleta que é, mas como namorada de um piloto. A matéria ainda termina falando que ela tem aparecido pouco nas corridas e encerra tal qual uma revista de fofoca: falando de planos de casamento do casal. 

Vou falar uma obviedade ao querido jornalista que fez a matéria: Pikkarainen tem vida própria, tem seus próprios treinos e suas competições. Tem identidade. Tem conquistas. Não é acessório de piloto e nem se vê desta forma. Bem diferente da forma com que o site de notícias a apresentou, anulando sua identidade da atleta ao apresentá-la, logo no título, como "namorada do piloto" - e criando a sensação ao leitor de que sua vinda é quase como a de turista, pois o que contaria mesmo seriam as possibilidades de o namorado aparecer pelas areias do Rio de Janeiro.

Encerrado o desconforto 1 (pelo menos em termos de escrita, porque essas coisas nos remoem por um tempão), vamos abrir a "porta 2" dos desconfortos. Ontem li excelente matéria no blog Cientista que Virou Mãe. Intitulado "A RECÉM-NASCIDA JÁ NASCE MULHER - Cultura do Estupro, Cultura da Pedofilia e a ausência de responsabilidade social da mídia brasileira", o post faz uma análise bastante pertinente sobre o papel da mídia na precoce erotização das crianças, na naturalização dos atos de estupro e até mesmo de pedofilia. Fazendo um passeio pela produção musical brasileira, de diferentes tempos e estilos, o texto aponta como a cultura brasileira e a mídia acabam por naturalizar os abusos  e a violência contra a mulher, culminando na postura de culpar a vítima pelo ato de violência que sofreu - fosse pela roupa, pelo lugar que frequentava ou coisas do gênero. 

Queridos, se fizermos um passeio pelo horrendo mundo de notícias "a la Datena", veremos que os casos de pedofilia e de violência contra a mulher independem da roupa, da idade ou do lugar que frequentam, pois já aconteceram dentro de casa, dentro de escola, dentro de igreja - digo isso porque normalmente aqueles que culpam as vítimas acabam afirmando que "se estivessem em casa, na escola ou na igreja isso não teria acontecido". Dito isso, segue um gráfico para ilustrar um pouco os casos.


O gráfico acima faz parte do artigo de Joana Domingues Vargas, intitulado "FAMILIARES OU DESCONHECIDOS? A relação entre os protagonistas do estupro no fluxo do Sistema de Justiça Criminal, disponível na plataforma da Scielo. Observem que ele apresenta dados levantados a partir dos BOs, portanto há uma chance imensa do número ser ainda maior, tendo em vista que muitos casos sequer chegam à delegacia de polícia.

Levando em conta o cenário apresentado pelos gráficos, muito me preocupa o fato de que muitas das pessoas que apoiam campanhas contra o estupro e a violência contra a mulher - e o fazem por realmente condenarem os atos de violência -, não percebem que músicas, filmes, novelas, minisséries, mostram atos de violência contra a mulher ou falam em "pegar as novinhas" (pedofilia), mas não se dão conta disso e até cantam e fazem coreografias que acompanham as danças. Mesmo que o argumento seja de que "está na pista de dança, relaxa e dança", dançar ao som desse tipo de coisa, ou não se incomodar com as cenas de violência contra a mulher (física, verbal, sexual) que a TV reproduz é algo que, para mim, não é compreensível. 

É impossível, para mim, conseguir fazer as duas coisas sem que não haja um choque. É impossível, para mim, reclamar e replicar posts sobre a violência contra a mulher e a pedofilia e não me sentir desconfortável ao assistir a cenas em programas de TV ou prestar atenção ao que as letras de música têm falado sobre o assunto. Como o post do blog bem coloca, ninguém nasce estuprador, mas se torna um - se programas de TV, músicas, novelas mostram a mulher como objeto, ou reforçam a ideia de que quando a mulher diz não, quer dizer sim ou, ainda, que não tem problema pegar novinha, por que ele vai achar que está errado???  

A "porta 3" tem relação com o debate acerca do Estatuto do Nasciturno e da proibição da interrupção da gravidez mesmo em caso de estupro. A bancada que apoia o projeto apela para o depoimento de uma filha da violência sexual que afirma que é filha de um estupro, não foi abortada e ama viver.

Não posso dizer como me portaria se passasse pela experiência traumática de um estupro. Não posso dizer se, caso engravidasse, eu abortaria ou não. Este é o tipo de questão individual demais, e que só pode ser respondida por quem a vive. Mas... não acredito que proibir a interrupção de uma gravidez fruto de violência esteja correto. E nem acho que caiba aos excelentíssimos deputados a decisão sobre as vidas e corpos dessas mulheres violentadas ou que ainda o serão. Se a senhora convidada para palestrar afirma que é fruto de violência, mas ama a vida, bom pra ela. Escapa das estatísticas. A maior parte das crianças frutos da violência não vêm ao mundo nas mesmas condições que outras crianças vêm, e muitas delas são rejeitadas, porque lembram as suas mães de que sua concepção foi fruto de um ato de violência. Jane Austen, ainda no século XIX, colocou na boca da personagem Elisabeth Benneth, algo que ainda é difícil para muitos homens compreenderem: que quando uma mulher diz não, isso realmente significa não.

Minha filha foi esperada, desejada e é amada. Mas minha filha também é fonte de minhas preocupações. Eu esperava que quando ela chegasse ao mundo, não teríamos que vivenciar experiências que eu vivi na adolescência: ao andar sozinha por uma rua, pensar se me mantinha na mesma calçada ou se atravessava a rua por medo de passar entre um grupo de homens; ouvir palavras grosseiras, do mais baixo calão, mas que para muitos homens (e infelizmente, aos ouvidos de várias meninas e mulheres) representava um elogio - gostosa, cachorra, vagabunda e outras que me recuso a reproduzir; que pudesse andar pelo campus de uma universidade e se sentir segura. Isso ainda não acontece - há aplicativos para que as meninas em Porto Alegre se encontrem para pegarem ônibus juntas, outro que serve como "botão de segurança" para a aluna acionar quando se sentir sob perigo e chamar a segurança do campus.

Quanto mais estatisticas vejo, quanto mais chamadas de notícias como da UOL eu leio, quanto mais música de diferentes gêneros tenho ouvido (tratando a mulher como objeto ou colocando-a apenas na condição de satisfazer os desejos do homem),quanto mais clipes da MC Melody me mostram, como mais a erotização precoce das crianças se naturaliza na nossa sociedade maiores ainda ficam minhas preocupações. 

Há muitas meninas que já têm percebido a forma como a mulher é representada na sociedade. Mas há muitas outras que ainda rebolam ao som de cachorra, vagabunda, poderosa sedutora (única qualidade atribuída à mulher).

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