Sobre alguns fenômenos editoriais que não consigo compreender.

Tenho uma grande amiga com quem constantemente converso sobre escrever. Vou subtrair o nome dela dessa postagem porque, caso ela a considere ruim, certamente não vai querer encontrar seu nome associado à ela 😁. O fato é que - modéstias às favas! - eu escrevo bem e ela também, e já nos questionamos sobre o motivo de não escrevermos um livro. Nosso questionamento não levou tempo para ser respondido e foi consenso entre nós duas: não escrevemos um livro porque temos vergonha na cara. Talvez porque frente a tantas coisas maravilhosas que a literatura trouxe às nossas vidas, tenhamos receio em chamar qualquer coisa que escrevamos como "livro", nos igualando, de certa forma, a Machado de Assis, Érico Veríssimo, Italo Calvino que também escreveram... LIVROS! Cuidado! Não estou falando aqui em qualidade de escrita nem comparando nossas escritas às deles, mas dizendo que, a partir do momento em que publicamos um livro, fizemos algo que eles também fizeram.

Sabem aquela chavão que diz que nós precisamos "ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro"? Quero dizer que não, nós não precisamos. Nós podemos poupar a posteridade de algumas coisas. Nem todos devem ser pais (e digo isso do alto dos meus mais de 20 anos lecionando e encontrando crianças das mais variadas condições sociais que foram trazidas no mundo e deixadas sozinhas para darem conta dele), nem todos conseguem plantar uma árvore (seja pela falta de espaço, seja pela mais completa incapacidade de cuidar de uma planta), nem todos deveriam achar que podem escrever um livro - ou mais: que devem escrever um livro.

Isso soa como rancor de uma escritora frustrada? Pode soar, mas garanto de pé junto e dedos sobre os teclados de que não é. Gostaria que soasse como percepção de uma leitora muito ativa, que procura ler de tudo, e que não entende alguns fenômenos editoriais. Como professora, procuro ler o que meus alunos estão lendo aos montes e repassando de mão em mão. Foi assim com Harry Potter, foi assim com Percy Jackson, com a Saga Crepúsculo (😥) e foi assim que, após saber que a Kéfera era a escritora no topo da lista dos mais vendidos, fui ver do que se tratava.

Quem é Kéfera? É uma Youtuber (gostou do termo?) que tem um canal ou talvez mais canais no YouTube. Os Youtubers são um fenômeno contemporâneo que envolve o universo dos adolescentes e jovens. Acredito que seja uma espécie de diário online em que fazem de tudo: dão desde conselhos sobre relacionamentos com amigos, crushs e coisas do gênero e até fazem vídeos de coisas toscas e sem noção, como a dona de uma canal desses que cuspiu na boca do próprio gato de estimação. O fato é que o sonho de muita gente é ter seu canal, ter milhares de seguidores e, consequentemente, ganhar muita grana. Para alguns dá muito certo; mas para outros, muito errado.

Voltemos à Kéfera. Mas antes de mais nada, leitores, um favor: não tenho nada contra ela, então se houver alguém que goste do que ela escreve, ok. Eu só quero entender um fenômeno e, para isso, estou pensando alto, em rede. 

Como ocorreu com outros livros, fui dar uma olhada no que os meus alunos estavam lendo loucamente. E chegou às minhas mãos o livro aí, ó. E confesso que me incomodei. Não é barato, trata-se de um monte de gracinhas impressas em papel de qualidade - incluindo uma contagem regressiva para o início do livro que ocupa cerca de 6 páginas (!!!!) -, de textos curtos com frases de efeito, e está (ou pelo menos estava) vendendo muito. A autora, aliás, lançou nova obra onde, em determinada altura, se sente na necessidade de desmentir o boato de que o livro anterior havia sido escrito por um ghostwriter.

Olhei, voltei a olhar, li algumas passagens que pareciam autoajuda mais do que barata, e juro que não consegui entender o que havia que pudesse explicar esse fenômeno editorial. E parei para pensar em outros fenômenos editoriais que, até hoje, não fizeram sentido para mim. Paulo Coelho, por exemplo. Li. Não entendi o porquê de tamanha agitação. Talvez eu não estivesse pronta para seus ensinamentos 😂😂😂😂😂. 50 Tons de Cinza? Não li. Se tentei? Sim, tentei. E mais de uma vez. Achei ruim demais, mal escrito demais. Mas vendeu mais que pãozinho quente, virou filme (mesmo que tenha recebido indicação ao prêmio Framboesa) e sua autora nada na abundância. E é isso que eu realmente não entendo. Como coisas tão ruins ou tão mal escritas conseguem não só serem publicadas como ainda por cima tornam-se fenômenos editoriais. E acho, honestamente, que acabam incentivando outras pessoas a escreverem - e que escrevem coisas ruins demais, embora acreditem piamente que são bons demais. E que devem escrever, que precisamo escrever. Ninguém precisa escrever, gente. Esqueçam aquela frase de para-choque de caminhão. A gente pode passar pela vida sem escrever um livro - porque literatura, trabalho acadêmico, bula de remédio derivam de apenas 1% de inspiração e os outros 99% são de pura transpiração.

Não acho que devamos ler apenas o que se chama de "clássicos da literatura". Devemos ler o que nos causa prazer, nos diverte, nos relaxa. Leio de tudo, assim como ouço de tudo. Mas nem por isso, essas coisas devem ser mal escritas. Eu realmente tento entender o que essas obras trazem que atraem dessa forma o público. Em quê aspecto conseguem criar um caminho de diálogo com esses leitores a ponto de se tornarem bestsellers, mesmo que tragam conselhos de autoajuda dignos de uma roda de botequim, ou que os adjetivos utilizados para a protagonista se referir aos atributos do rapaz se resumam a "como ele é lindo", mesmo que se pague caro para dar de cara com uma contagem regressiva, uma página ocupada por três linhas ou fotos de caras-e-bocas da autora. Quero entender isso. Por que a literatura que é escrita para o consumo apenas, não tem o desejo de se tornar um clássico, não pode ser bem escrita? Por que o público não se incomoda em pagar caro por um livro que praticamente não tem conteúdo?


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