Nascidos na Escravidão

Tenho tentado escrever sobre esse livro há bastante tempo. O segundo parágrafo, por exemplo, está escrito há meses e salvo no modo rascunho. Num momento "psicologia de botequim", talvez a escrita realizada aos poucos, em partes, seja resultado da forma como eu li a obra: aos poucos, e recuperando o espírito após alguns depoimentos.

Há um bom tempo, acompanhando as postagens da BBC Brasil, li uma matéria que tratava da publicação de entrevistas realizadas com ex-escravizados nos Estados Unidos. Como parte das ações realizadas durante a Grande Depressão, Roosevelt contratou escritores para que viajassem pelo sul dos Estados Unidos e colhessem testemunhos de pessoas que conheceram a condição da escravidão. Portanto, entre 1936 e 1938 escritores brancos e negros viajaram pelos estados sulistas em busca desses testemunhos para o projeto FWP - Federal Writer's Project. As transcrições de todo o material estão na Biblioteca do Congresso Nacional e podem ser acessados de forma online.



A obra foi lançada no Brasil pela editora Hedra, em 2020, e uma parte dos relatos foi selecionada para publicação a partir da organização de Tâmis Parrin. Acho pertinente destacar o prefácio de autoria de Paul D. Escott, que apresenta a importância que essa documentação representa: ela traz a escravidão descrita sob a ótica de quem foi vítima dela. Os depoimentos dão voz a um grupo que foi por muito tempo silenciado pela historiografia - ao invés de observarmos a escravidão da janela da casa-grande, a gente a acompanha do interior das senzadas.

Em seu prefácio, Escott discute o que é a razão ela qual essa documentação não recebeu espaço e voz no tempo de sua produção: a primeira metade do século XX foi o período de uma historiografia baseada numa supremacia branca e para a qual negros, mulheres, crianças, e pessoas LGBTQI+ não tinham voz e sequer poderiam ser vistos em uma condição que não fosse a de subjugados, inferiores, subalternos.


"Os mais influentes entre os primeiros estudiosos da escravidão, como U.B. Phillips, em geral compartilhavam das ideias da supremacia branca. Phillips escreveu que a escravidão fora uma escola para os africanos incivilizados e rejeitou as narrativas de escravos, dizendo que não eram confiáveis e não tinham valor" [ESCOTT, Paul. D, "Introdução". Nascidos na escravidão: depoimentos norte-americanos. PARRON, Tâmis (org.). 1ª edição. São Paulo: Hedra, 2020, p. 11]


Os depoimentos estão organizados em capítulos temáticos: trabalho, condições de vida, crueldade e castigos físicos, famílias, atitudes raciais, cultura negra, resistência, emancipação.

O recolhimento dos testemunhos é algo precioso, mesmo que tenha ocorrido anos após a abolição da escravidão (1860). Apesar de poucas testemunhas oculares daquele tempo ainda estarem vivas, o que reverberava fortemente era a experiência da escravidão e sua violência não ficaram contidas apenas na memória daqueles que já haviam partido. A geração que os sucedeu foi o receptáculo dessas memórias e sofria (e ainda sofre) as consequências de uma vida de privações materiais, espirituais, de segregação e de diversas formas de violência.

A experiência da escravidão e da segregação racial por si já são traumáticas e por mais que possamos nos aproximar para compreender o mal que causam, creio que jamais teremos real dimensão do horror que causam. Acredito que seja por isso que a leitura dos documentos nos faz perceber: apesar da tentativa do escritor branco de se aproximar e de ouvir as histórias, ele não é alguém de confiança para quem os entrevistados abririam profundamente suas almas e revisitariam as memórias. Ou mesmo dividiriam as agruras de viver numa sociedade profundamente racista. Não nos esqueçamos de que no sul dos Estados Unidos vivia desde o final do século XIX sob as Leis Jim Crow que legalizavam a segregação racial. Graças a elas havia espaços separados para brancos e negros; bebedouros separados para brancos e negros; leis que obrigavam negros a cederem seus lugares a brancos em ônibus. Foi contra elas que a costureira Rosa Parks, em 1955, se negou a ceder seu lugar no coletivo, foi presa e desencadeou a onda de movimentos pelos direitos civis da população afro-americana.

Para registrar as memórias da escravidão foram convidados escritores brancos e negros, conforme escrevi logo no início do texto. Aos brancos, não foi dada muita abertura e nem muita confiança. Penso que além das leis segregacionistas havia, ainda, o medo de falar a um branco algo que pudesse ser entendido como ofensivo e desencadear prisão por desacato ou violência. Por maior boa vontade que o escritor pudesse demonstrar, ele continuava a ser um homem branco, um sinônimo de perigo e de violência.

Particularmente, acho que todo mundo deveria ler a obra. Por quê? Porque ela, mais do que nunca, derruba várias falas negacionistas em relação à escravidão. Afirmações do tipo:
  • A escravidão foi branda;
  • Os escravos eram parte da família;
  • Todos tiveram as mesmas oportunidades que os brancos;
  • A escravidão foi boa para os negros, os "civilizou"
Queria poder dividir o impacto que essa leitura causou em mim, e talvez a melhor forma de tentar fazer isso seja compartilhar algumas passagens. Vou usar a seguinte estratégia: para cada tópico que lancei acima, colocarei uma ou duas passagens que podem derrubá-lo. Lembrando que a obra traz muito mais do que do que o que citarei - basta olhar os títulos dos capítulos, citados anteriormente: trabalho, condições de vida, crueldade e castigos físicos, famílias, atitudes raciais, cultura negra, resistência, emancipação.

  • A escravidão foi branda;
"'Eu lembro', ele continuou, 'como amarravam o escravo ao redor de um poste, com as mãos amarradas juntas ao redor, e então um grandalhão pegava um chicote de couro de cobra e açoitava ele até as costas estarem cortadas e sangrando, o sangue salpicado, gesticulando com aquelas mãos estranhas de grande, as costas recortadas. Depois eles derramavam salmoura em cima, que secava e endurecia e grudava nas feridas. Eles não lavavam até curar. Às vezes, eu via o senhor Everett pendurar um escravo na pontinha dos dedos. Ele o amarrava de um jeito que ele tinha que ficar na ponta dos dedos e deixava ele assim'". (John Eubanks, Indiana. p. 116).

 "Lembro que uma vez o velho Ned White foi pego rezando. Os capatazes pegaram ele no dia seguinte e arrastaram para as estacas, lá onde já estavam cravadas no chão. Fizeram o Ned tirar tudo, menos as calças, e deitar de barriga para baixo entre as estacas enquanto amarravam os braços e as pernas dele às estacas. Depois chicotearam ele até o sangue correr como se ele fosse um porco. Fizeram todos os escravos irem ver ele e disseram que a gente ia levar o mesmo castigo se nos pegassem. Não se deixa ninguém tratar um cavalo como se tratava a gente naquele tempo." (Mingo White, Alabama, p. 117-118.)

 

Não, a escravidão não foi, de forma alguma, branda. Ao contrário. Ela exerceu violência física, psicológia e sexual. Na condição de "propriedades de seu senhor", as mulheres eram destinadas aos desejos de seus donos. Os filhos nascidos dessa violência cresciam na condição de cativos. Com isso, podemos seguir para o próximo tópico:

  • Os escravos eram parte da família;
"Eu brincava com os filhos do senhor Cole o tempo todo, e quando fiquei mais velho ele me pôs a trabalhar buscando madeira e outros servicinhos assim, e também dando de comer para os porcos. Os pequenos tinham que apanhar algodão todo o outono". (Thomas Cole, Texas. p. 33-34)

"Às vezes, os brancos passavam uma noite na senzala. Não na fazenda dos Davenport, mas em outras das redondezas. Os escravos conversavam entre si sobre isso. Depois de um tempo nascia um bebê novo. Mulatinho. Quando a criança ficava grande o suficiente para trabalhar um pouquinho, o senhor vendia ele (ou ela). Não fazia diferença que era sangue do seu sangue, não se o preço fosse bom!" (John White, Oklahoma. p. 190)


Não, os escravizados jamais foram considerado partes da família. Se os escravizados de casa recebiam melhor alimentação do que aqueles que trabalhavam no eito, esse tratamento não tem relação com uma cordialidade ou proximidade afetiva por parte dos brancos, mas com a preocupação que os brancos tinham com sua própria imagem: naquele tempo e naquela sociedade, escravizados de boa aparência trabalhando no interior da casa davam um ar de respeitabilidade e poder ao fazendeiro.


  • Todos tiveram as mesmas oportunidades que os brancos;
"Não, minha filha, os brancos não ensinavam nada para os negros, só a serem bons para o seu senhor e a sua senhora. O que de estudo se tinha naqueles tempos, eles tinham à noite. Se ensinavam sozinhos". ( Louisa Gause. Carolina do Sul. p.188).

"Eles nos deixavam ir à igreja no domingo, a uns três quilômetros pela estrada pública, e contratavam um pastor branco para pregar para nós. Ele nunca nos dizia nada além de nos mandar ser bons criados, colocar as coisas do senhor e da senhora no lugar e não roubar galinhas nem porcos e não mentir sobre nada, Depois ele batizava e era isso, você tinha religião. Nunca dizia nada sobre o escravo morrer e ir para o Céu. Quando morremos, eles nos enterram no dia seguinte e você é igual a qualquer outra cabeça de gado que morre na fazenda. É isso e mais nada, isso é tudo para você. Você morreu, fim de história". (Alice Sewell, Missouri. p. 186)


Não, os escravizados não tiveram as mesmas oportunidades. Não puderam frequentar as escolas, não puderam manter abertamente sua religiosidade, não encontravam na religião imposta pelo homem branco amparo, acolhimento e nem mesmo a perspectiva de atingir o Céu.


  • A escravidão foi boa para os negros, os "civilizou";
"Logo antes da guerra, um pastor branco veio visitar os escravos e nos disse: 'Vocês querem ficar com as suas casas, onde ganham tudo de comer e onde criam os seus filhos, ou querem ficar vagando por aí, sem teto, feito animais para o Sul vencer. Quem quiser rezar para o Sul vencer levante a mão'. Todos nós levantamos a mão, porque estávamos com medo de não levantar, mas ninguém queria ver o Sul vencer." (William M. Adams, Texas. p. 185)

"Na maioria dos negros havia um grande desejo de saber ler e escrever. Tirávamos vantagens de todas as oportunidades de nos educarmos. A grande maioria dos fazendeiros não tinha piedade se um de nós era pego tentando aprender a escrever. Era a lei que se um homem branco fosse pego tentando educar um escravo negro, ele estava sujeito a ser processado e sentenciado à prisão e uma multa de cinquenta dólares. Nunca tínhamos a permissão de ir à cidade e foi só depois que fugi que soube que vendiam qualquer coisa além de escravos, tabaco e uísque. Nossa ignorância era o maior poder que o Sul tinha sobre nós. Sabíamos que poderíamos fugir, mas e depois? Quem fosse culpado desse crime estava sujeito a punições terríveis." (John W. Fields. Indiana. p. 184)

     

Eis o papel civilizatório que os brancos afirmavam cumprir: zero. Todos os caminhos possíveis ao letramento dos escravizados, fossem por ações deles mesmos ou fossem pelas ações de brancos, eram fortemente punidos. Assim, uma sociedade iletrada seria mais fácil de ser controlada do que o contrário. 

Seria possível indicar outros exemplos - o livro é rico em testemunhos, por isso considero sua leitura tão importante -, mas penso que a seleção dos excertos já nos oferece uma visão da experiência da escravidão. A experiência da violência, da humilhação, da desumanização, do controle, da aculturação. É inadmissível aceitar a fala de que a escravidão foi boa para os africanos na América, que foi "branda". O conceito de crime contra a humanidade surgiu posteriormente à escravidão nas Américas, mas certamente ele cabe corretamente na questão da escravidão. Por isso é tão falacioso (e cruel) o discurso de que todos nós tivemos as mesmas oportunidades e de que quem vive em condições de pobreza o faz por falta de esforço. Não é por nada que a maior quantidade de pessoas pobres é formada por negros: a razão disso é o passado escravista e a estrutura de racismo estrutural que se estabelece fortemente nos Estados Unidos e também aqui, no Brasil. 

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