As Cidades Invisíveis

Este texto eu escrevi há uns dois anos, quando o Fabricio organizou o primeiro e único exemplar de um jornalzinho nosso. Está grande para um blog, mas eu gostei dele quando o escrevi.

“Existe um momento na vida dos imperadores que se segue ao orgulho pela imensa amplitude dos territórios que conquistamos, à melancolia e ao alívio de saber que em breve desistiremos de conhecê-los e compreendê-los, uma sensação de alívio que surge ao calar da noite (...)”
As Cidades Invisíveis


Italo Calvino nasceu a 15 de outubro de 1923 em Santiago de Las Vegas, Cuba. Aos seis anos de idade sua família voltou para a Itália, onde Calvino deu continuidade a seus estudos. Durante a II Guerra participou da resistência ao fascismo e integrou o Partido Comunista até 1956. Embora tenha se inscrito na Universidade de Torino para cursar a faculdade agrária – dando continuidade à tradição de sua família, já que sua mãe fora assistente de botânica na Universidade de Pavia e seu pai agrônomo e diretor de estações experimentais no México e Cuba – Calvino se enveredou pelo campo da literatura, de onde nunca mais se afastou. Faleceu em 19 de setembro de 1985 às vésperas de embarcar para os Estados Unidos onde proferiria uma série de conferências sobre literatura na Universidade de Harvard. Suas conferências foram posteriormente reunidas e publicadas sob o título Seis Propostas para o Próximo Milênio.

A ciência, as artes, a literatura, os mais variados campos do conhecimento e da produção cultural possuem classificações e hierarquizações próprias numa tentativa de se ordenar tudo o que é produzido. Parece ser uma necessidade do ser humano organizar o mundo buscando uma forma de controlá-lo e de dominá-lo e assim evitar surpresas ou inadequações a normas já estabelecidas. Assim sendo, Calvino muitas vezes é colocado ao lado de Gabriel Garcia Marques no rol de autores de literatura fantástica o que é, no mínimo, uma visão simplista das obras de ambos. Parto da seguinte proposição: a produção literária – pelo menos a narrativa - de Italo Calvino está além da classificação reducionista de “fantástica” e se estende através do campo da filosofia. Não se trata de compêndios ou tratados de filosofia, mas de que através de sua obra as discussões abordadas têm peso maior que a narrativa ao proporem, através das situações de seus personagens, um questionamento e uma análise acerca da sociedade, das relações pessoais e das organizações sociais, ou seja, de tudo o que já é considerado senso comum e, portanto, é aceito sem nenhuma reflexão. Não é esse o papel da filosofia: voltar seus olhos para questões já estabelecidas pelo status quo propondo novas interpretações e novos posicionamentos?

Várias são as obras de ficção de Calvino nas quais discussões acerca da sociedade e de sua ordem são abordadas, mas nunca de uma forma direta. Não existem nas falas de seus personagens discursos moralistas, mas constantes questionamentos que surgem a partir do confronto deles com situações inusitadas. Em O Cavaleiro Inexistente, por exemplo, nos deparamos com o personagem título que é dotado de valores como coragem, lealdade, honra e virtude que, lamentavelmente, são encontradas somente em um cavaleiro que não existe, e não nos indivíduos que nos rodeiam – seu escudeiro é um jovem com problemas mentais, tratado à margem da sociedade, mas dotado de generosidade e ingenuidade únicos. Mesmo sendo motivo de piada de seus outros colegas cavaleiros o personagem-título da obra toma para si esse escudeiro com orgulho e respeito, independentemente de suas limitações cognitivas.

Em O Visconde Partido ao Meio os personagens estão às voltas com as duas metades de seu antigo senhor – uma completamente má e outra completamente boa – com as quais é muito difícil de conviver enquanto separadas. O maniqueísmo tão comum ao tema é deixado de lado e conclui-se que tanto o bem quanto o mal são necessários ao homem simultaneamente, e que a existência de apenas um deles (ou a manifestação maior de um deles, não interessando qual) é prejudicial.

Poderia listar vários livros de Calvino, mas ater-me-ei ao que considero, talvez, o mais belo: As Cidades Invisíveis[1]. O enredo desse livro aparentemente se apresenta como algo simples – e alguns leitores inadvertidamente fariam uma leitura simplista da obra -: o lendário mercador veneziano Marco Polo descreve ao grande Imperador Kublai Khan as cidades que compõem seu vasto império, as quais o grande líder e conquistador certamente não conheceria devido à sua idade avançada. Seu império é vasto, os tributos arrecadados são de grande montante, mas para o grande imperador os relatórios feitos por seus subordinados já não despertam seu interesse:

Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores”. (p. 09)

Antes de entrarmos no cerne da questão da narrativa é válido descrevermos as cidades não da forma como Polo as descreveu, minuciosamente, mas a partir das características gerais que imputou a elas. Todas as cidades têm nomes femininos e muitas delas têm características que poderíamos identificar como humanas: suas contradições, suas memórias, suas relações com o passado e o futuro. Todas as cidades são descritas em termos de suas relações, não se atendo o narrador a suas meras características físicas. Todas as descrições dão conta da relação entre a cidade - enquanto um ser vivo - e seu tratamento da memória, do olhar, do desejo, da sua continuidade.

A partir da descrição das narrações de Marco Polo Calvino descreveu uma forma de narrativa efetivada pelo veneziano que não prescinde de palavras, mas que se utiliza de sons, símbolos, pantomimas para recriar e apresentar a Gengis Khan as cidades de seu grande império. É importante assinalar que mesmo após Polo ter dominado o idioma o imperador ainda se reporta à simbologia utilizada pelo viajante em suas primeiras narrativas:

“Com o passar das estações e das missões diplomáticas, Marco adestrou-se na língua tártara (...) As suas eram as narrativas mais precisas e minuciosas que o Grande Khan podia desejar (...) Contudo, cada notícia a respeito de um lugar trazia à mente do imperador o primeiro gesto ou objeto, com o qual fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo acrescentava um novo sentido ao emblema”. (p. 23)

Nada nos garante que o imperador compreendeu exatamente o que a descrição gostaria de apresentar, e nesse ponto uma fala do próprio mercador tem um peso fundamental ao afirmar que “quem ouve retém somente as palavras que deseja” e que, principalmente, “quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido”. (p. 123 – grifo meu)[2]. A forma que a narração assume para o ouvinte depende dele próprio, do que ele retém e do que ele ignora, e não do que o narrador apresentou. Dessa forma, as cidades descritas assumirão para o ouvinte formas e significados diferentes daqueles do narrador – assim como esse mesmo exercício de descrição assumirá formas diferentes quando executado em contextos diferentes e para ouvintes diferentes.

Muito mais do que narrar as características físicas das cidades visitadas trata-se de descrever as impressões causadas por ela e também causadas nela pelo visitante. Na verdade a significação que é dada a cada nova cidade carrega em si a experiência trazida pelo próprio Marco Polo. Todas as novas cidades são para o viajante uma reconstrução de seu passado e de sua identidade sem a possibilidade de determinar o seu futuro, mas sim de reconstruir o seu próprio passado e sua trajetória – uma recuperação daquilo que seu ouvido reteve ou que ignorou. É a partir de suas antigas impressões (e mesmo de suas antigas memórias de Veneza) que essas novas cidades são erguidas e que elementos de seu passado até então perdidos são recuperados quando nelas ele chega – e esses mesmos elementos recuperados vão apresentar valores e despertar sensações diferentes do que ele já havia experimentado. Essas descrições feitas pelo viajante são únicas e exclusivas de suas experiências individuais e certamente são muito diferentes das impressões dos burocratas e subordinados do líder tártaro.

“Kublai Khan percebera que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a passagem de uma para a outra não envolvesse uma viagem mas uma mera troca de elementos. Agora, para cada cidade que Marco lhe descrevia, a mente do Grande Khan partia por conta própria, e, desmontando a cidade pedaço por pedalo, ele a reconstruía de outra maneira, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os”.
(p. 43)

O Grande Khan percebera que a chave para as descrições de Marco Polo poderia ser usada por ele, que a significação de cada experiência e para cada cidade é construída pelo próprio indivíduo. É isso que possibilitou a ele que desmontasse as cidades descritas por Marco e as remontasse alterando símbolos, percepções e sentidos relevantes apenas para ele, retidos apenas por ele. Sendo assim, ele não precisava mais visitar as cidades que seriam descritas, pois já conhecia todas. As cidades descritas pelo veneziano ganharam novas características e novas formas para Kublai Khan.

[1] CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Tradução de Diogo Mainardi).

[2] É interessante lembrar que Calvino utilizou expediente semelhante em seu livro O Castelo dos Destinos Cruzados onde levou-o ao extremo, já que todas as personagens chegaram ao castelo mudas e a descrição de suas jornadas até o local acontece com a disposição de um baralho de tarô sobre uma mesa. Na verdade, a narração que lemos no livro é a interpretação de uma das personagens a partir de sua leitura individual e da significação que deu para a simbologia contida nas cartas do baralho , mas não significa que seja a mesma de outras personagens que se encontravam ali.

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